terça-feira, 12 de janeiro de 2010

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

..EDUCAÇÃO..


Recife, 01 de dezembro de 2009.
Ao
Exmo. Sr.
João da Costa
MD. Prefeito do Recife

“...Um homem roubado nunca se engana...”
Do complexo ao trivial a frase acima expressa, com simplicidade, a nossa indignação diante do que está acontecendo na Secretaria de Educação do nosso amado Recife. Estamos diante de uma involução!
Palavras como autonomia, respeito, consideração e humildade foram substituídas pelo centralismo de quem faz de sua própria cabeça ou só apóia o que lhe interessa.
 O que deveria ser uma prática: planejar juntos, valorizar ações, reconhecer capacidades dos que estudam, vivenciam e tecnicamente entendem de processos educativos, não existe mais.
Vivemos uma contradição.
Como dizer que temos um técnico em educação se o Secretário é médico?
Nesta cidade não tem ninguém da educação com essa competência?
O setorial de educação do PT não tem quadros?
Por que a descontinuidade no processo da educação se foi a secretaria de educação a melhor avaliada na gestão João Paulo?
É para o controle do orçamento? Com que fins? Economizar recursos?
E o alinhamento “serviu” ao governo do estado com a imitação mal feita de tudo que é feito por lá, inclusive a opção pela Fundação Roberto Marinho... Que pena que somos incapazes de cuidar da educação!
E quanto à qualificação como gestor:
Como dizer que temos um gestor? Não havia alguém que sabia conciliar os sentidos pedagógicos da política com o administrativo? As pessoas que são do campo da educação não têm este perfil?
A gestão moderna é baseada no centralismo -“eu penso logo todos façam”!
É feita do assédio moral segundo o qual ninguém pode exigir e discordar do “Rei” ...Voltamos à monarquia! “Quem não concorda, não acredita, pode sair!” ,Pe. Reginaldo merece este tratamento?
É sempre o zerar, por que chegou agora, não é da área? Começar de onde? Como ficam os êxitos dos processos já construídos?
Cuidar das pessoas virou dar grito, desconsiderar os técnicos e as pessoas que defendem a transparência nas decisões.
Não recebe, não ouve, e coloca as questões sempre no campo da amizade, do doméstico, ou do “ “querem me queimar “!
Não se pode cobrar promessas de campanha, de “continuidade” do projeto político, de coerência com o respeito aos direitos construídos como políticas públicas, pelo jeito petista de governar.
“Ou fazemos como FHC   “- “ esqueça o que disse ou escrevi”?
É agir como fez com a Comunidade do Pilar, diante da ameaça de policiais, a atitude da diretora de suspender as aulas não foi a certa? Deixaria seus filhos para serem espancados (onde estudam os seus filhos)?. Sua resposta sem se ater ao fato foi de dizer simplesmente “quem manda abrir ou fechar escola sou eu” e depois nem lá apareceu como responsável pela educação da cidade como foi delegado pelo prefeito.
É possível um gestor que, não sendo da área, não dialogar com o conjunto das pessoas? Ele não deveria ter a humildade de escutar e decidir juntos?
O que vemos é o seu centralismo e a falta de autonomia de seus diretores e gerentes.
Temos que conviver com o que ele diz abertamente - que não tem tempo para falar com todo mundo e as pessoas devem se dirigir aos seus assessores, que nada decidem ou resolvem sem seu “autorizo” – (a nova palavra dos corredores da Secretaria).
Não é preocupante saber da falta de autonomia de seu diretor administrativo/financeiro, que exista pasta do que é para pagar e não pagar, mesmo que estes serviços tenham sido prestados.
Qual a leitura equivocada, sem necessidade, sem nenhuma “crise” de poder, ao adiar a eleição dos diretores em meio a um processo, dizendo que isso é democrático e que vai dar mais autonomia às diretoras, prometendo que quem deve “mandar “são elas/es? Isso não valeria para o que seria eleito, não parece jogo de cartas marcadas?
Andar dizendo  que os técnicos da secretaria não fazem nada e que se pode resolver tudo direto com as escolas,  demonstra falta de clareza do papel dos diretores de escolas, e da política feita em rede, que deve ser mediada por pessoas “qualificadas e das áreas”.
Fácil foi contratar “ o seu motorista particular ganhado mais que os outros, seu “funcionário” de confiança.
Afinal qual o perfil exigido pelo prefeito, desconfio que a indicação esteja no campo do sou amigo “ou como diz os jornais” ele é da cozinha do prefeito.  Se isto é o que parece ser o fato da indicação, estamos diante de um novo nepotismo, em que substituímos os familiares e colocamos “os meus”.
Como é contraditória, qualquer pessoa pode ser secretário de educação, mas como fica o mérito da docência e da vivencia da prática educativa? Mas para dirigir uma escola se exige a especificidade... Como ficamos?
Do simples ao complexo, precisamos nos perguntar, os ônibus que sempre foram solicitados pelos professores/as e escolas para seus passeios precisam passar pelo gabinete do secretário? O que era uma política descentralizada e de autonomia das escolas para o acesso aos bens da cidade (que pode ser uma fábrica de sorvete) se transformou em um “toma lá dá cá”.
Ruim saber que os jovens das bandas marciais tiveram de solicitar a interferência de um vereador para ter os ônibus para participar dos concursos de banda. E olhe que se tem uma tradição de reconhecimento, pela eficiência nestes e noutros eventos....
Promoveu-se uma festa com o dinheiro público (feita pela secretaria em mais uma ingerência na vida do sindicato dos professores), em plena contenção de despesas - “crise”, em que o comentário das pessoas que foram dizia... ”muita comida e bebida de graça”...
Qual foi o real interesse do secretário? Passar a idéia de que está tudo bem e que os diretores e técnicos lhe apóiam?
Para liderar este processo, deveria ser alguém que entenda os sentidos da prática educativa  e de suas exigências para a continuidade  no jeito de agir de educadores/as e estudantes que, já na escola, devem exercitar o ser sujeitos de direitos e coletivos em sua prática cidadã.
Estamos diante de alguém que ocupa um lugar estratégico na construção de uma nova cidade, contudo, os que ficaram, apesar da saída da secretária anterior, acreditaram na continuidade e na possibilidade do diálogo... No entanto, esses/as são ameaçados.
Aqueles que foram indicados para cargos de comando na articulação das ações, se sentem inviabilizados, estão pedindo exoneração.
O Prefeito entrou, ou entramos nós em uma roubada?
Viva Zumbi (linda caminhada), viva Zapata... Todas/os que acreditam na educação como condição de transformação da realidade.
Quem faz a cidade somos nós, acredito.
Será que seu secretario de educação sabe o que é uma cidade educadora? Nossas crianças se apresentaram no Geraldão, não deveria ser no Teatro Santa Isabel, no Marco Zero, onde sempre encantaram com seu canto/coral o seu ser cidadão de nossa cidade.






João Simão


Cidadão do Recife, militante do PT, professor e Educador

..EDUCAÇÃO..



Aos educadores da Rede Municipal de Educação

É praticamente do conhecimento de todos os profissionais desta Secretaria (e mesmo fora dela) que estamos passando por um momento delicado, de desorientação e incertezas que representa, na verdade, a passagem para um novo projeto, cuja natureza, objetivos e princípios eu, pessoalmente, não estou mais disposto a participar. É, assim, na declarada intenção de não desejar mais ver meu nome ligado a este projeto que apresentei meu pedido de exoneração da Assessoria Executiva da SEEL em caráter inegociável.
No entanto, penso que o momento exige algumas reflexões que não podem se resumir a acusações ou vitupérios sobre a personalidade do próprio Secretário: acusá-lo de imaturo, narcisista, inculto, autocrático ou truculento seria adentrar no domínio do “traço de personalidade” que é algo que deve ser resolvido em outra esfera  -a psicanalítica, na qual não disponho de nenhuma competência. Interessa, aqui, saber a serviço de que “projeto” tais traços se revelam adequados e observar, afinal, se não há uma perfeita compatibilidade entre personalidade autoritária e projeto tecnocrático.
Sou consultor e assessor desta Secretaria desde os anos 80 e, bem ou mal, ajudei a pensar e implantar idéias pedagógicas que envolvem uma certa noção de participação democrática dos educadores, de qualidade social da educação, de republicanismo escolar..., certo de que é na esfera pública da palavra argumentada que a coisa pedagógica se decide. E foi, penso, apoiada nestas idéias que esta Secretaria sempre se pautou, evitando exatamente que as questões educativas fossem tratadas como um “problema de gestão”, ciente dos enormes riscos que corríamos –e que corre a própria idéia de democracia- quando o espaço da argumentação é substituído pelo da “competência técnica”, pelo “gerencialismo”, quando o arrazoado cede lugar à planilha Excel...
 Um dos reflexos disto na educação apareceu, nos anos 70, aqui no Brasil, no chamado ‘tecnicismo pedagógico’: o planejamento, a planilha, a gestão, o monitoramento decididos “tecnicamente” pelos gestores substituindo as pessoas de carne e osso. O projeto voltou nos anos 80 com a onda avassaladora da “qualidade total em educação” e retorna agora em forma renovada, que tentarei esclarecer a seguir. Isto envolvia um forte conflito entre a noção de eficiência e produtividade dos serviços públicos e privados, com a difusão ao mesmo tempo falsa e massiva de que o setor privado seria mais eficiente do que o público, o que não se mostrou verdadeiro nem na pesquisa de alta tecnologia, nem no ensino superior e, para chegar mais perto, nem na qualidade da pesquisa e da formação na área educacional.
Aproveitando o espaço deixado por algumas instituições internacionais de financiamento e apoio técnico à educação (Banco Mundial, por exemplo) multiplicaram-se as empresas e organizações de assessoria e consultoria às secretarias de educação, muitas delas vendendo pacotes fechados, técnicas “exitosas” de correção disto e daquilo, fórmulas de sucesso de elevação de níveis de aprendizagem que passaram, claro, a disputar o dinheiro público através das secretarias municipais. Recife inclusive (!), que assinou recentemente convênios e acordos com fundações (Roberto Marinho, Airton Senna, Alfa e Beto!!!!) sem consulta do secretário a nenhuma das instâncias pedagógicas desta rede ( quando houve, a atitude foi de ignorar o parecer do consultado) e contrariando, inclusive, uma história e uma tradição pedagógica aqui existentes. Fica-nos a impressão de estarmos, aqui no município, num supermercado educacional onde se coloca no carrinho os produtos vistosos das prateleiras, sem nenhuma reflexão mais demorada. Não preciso dizer que a idéia, aparentemente muito cara ao nosso  secretário, de “inovar” é típica de um certo frenesi gestionário que imagina sempre o “novo” como algo superior ao que existe e o arsenal tecnológico como recurso para diminuir a incompetência do fator humano, confundindo o novo –apanágio do impensado e do insólito- com a “novidade” característica da sedução consumista e da imaturidade do julgamento, todas acompanhadas de medidas, ‘lançamentos’ e ‘inaugurações’ superficiais e pouco articuladas com um projeto pedagógico mais profundo e estruturador. Qual o impacto da “escola do futuro” no conjunto de uma perspectiva pedagógica universalizante? Qual o sentido de se estabelecer, em detrimento e à revelia da DIRE, uma relação direta com os gestores sem aquela intermediação pedagógica necessária e qualificada? Qual o sentido do esvaziamento da GAC –e a intenção de  integrá-la com o Escola Aberta- praticamente anulando as boas iniciativas que marcaram aquela gerência? Qual a razão do esvaziamento do tema do ano letivo (Recife, cidade educadora), de tanto interesse para uma perspectiva republicana de educação?
De meu lado, a tentativa de reestruturar a proposta pedagógica, a formação continuada e reorientá-la na direção do regime de Ciclos esbarrou no dilema entre “tempo político” (apresentação de “resultados” a qualquer custo e altamente midiatizados) e “tempo pedagógico”, com perda evidente para o segundo. Quanto à possibilidade de diálogo e assessoramento, junto ao secretário, desde o início ficara claro que teria imensas dificuldades de me fazer ouvir ou, ao menos, de ser consultado em decisões que reputo cruciais. Monólogo, histerismo, monocratrismo, desconfiança generalizada nas pessoas, desqualificação sistemática dos técnicos, decisões intuitivas e despreparadas, me mostraram que os tempos eram outros. E não acho que sejam “melhores”! E, pior, não me parecem honrar uma história recente desta rede, que tivera nomes como os de Edla Soares e Maria Luiza Aléssio.
Ninguém é contra uma gestão adequada de recursos e meios; claro que é necessário uma reestruturação administrativa importante nesta rede, voltada para o máximo de aproveitamento dos recursos públicos; é importante o estabelecimento de metas e o racionalização dos critérios. Mas não se pode confundir os meios com os fins e, sobretudo, não  aceito a substituição de um pelo outro!
Sem dominar a linguagem da área, o debate educativo, a história da educação municipal;  avesso a qualquer forma de discussão teórica; um profundo desconhecimento das questões pedagógicas propriamente ditas, nossa rede parece à mercê de uma orientação essencialmente administrativista, onde o próprio debate que procurei instaurar do CAP foi visto de forma desprezível ou, no mínimo, inócua pelo secretário. É surpreendente, pois, que, ali onde o debate pedagógico deveria conhecer um ritmo e uma freqüência institucional, isto tenha sido, até o insuportável, desencorajado e, sobretudo, sem jamais –digo bem, jamais! -contar com a presença do próprio secretário em tais discussões.
E é aqui em que a personalidade do agente se compatibiliza com a natureza do projeto: concordemos que não se convida um democrata convicto para participar de um governo autoritário! Instaurou-se, entre nós, uma política do medo que comunica “decisões de gestão”, da ameaça e do deboche, ratificando uma relação que, na prática, todos nós conhecemos bem: a relação entre mediocridade e arrogância, especialmente entre aqueles que ocupam postos de mando. Lembremos, de resto, que a tecnocracia é uma das formas “científicas” de eliminação do mundo público! O curioso é que isto se dá no interior de uma ordem formalmente democrática e, sobretudo, com o uso abusivo de seus jargões (pactuar, transparência, participação, etc), o que já em si, indica algo de muito grave...
Vendo meu espaço de atuação se reduzir, atuação inclusive contrariada pela natureza dos convênios firmados; vendo a sistemática atitude de desqualificação de nossos melhores quadros pedagógicos e, sobretudo, assistindo a uma crescente deterioração do ambiente de trabalho, decido deixar esta Secretaria esperando que não dure muito a passagem destes tempos de susto e desencanto, e que este momento de reflexão e crítica nos ajudem a recuperar e honrar uma história educacional de uma cidade que já ofereceu a este país nomes e idéias que não podem ser deixadas ao sabor do desvario tecnocrático.


Recife,  23  de Dezembro de 2009
Flávio Henrique Albert Brayner

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

>> GIRO - violência -

Do Site Observatório de Favelas:

Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 2010, 11h55

Direitos Humanos - 05/01/2010 16:31

Taxas de homicídios

O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) divulgou nesta segunda feira, dia 4, os dados sobre violência no estado, relativos ao mês de novembro de 2009. Comparando com mesmo período de 2008, foram registradas menos 78 mortes por homicídios dolosos (assassinatos), o que representa uma diminuição de 15,1%.

Se considerarmos o “trimestre móvel” que inclui os meses de setembro, outubro e novembro, o índice de homicídios dolosos caiu 14,4%. Isto quer dizer que, em 2009, foram 217 mortes a menos do que no mesmo período do ano anterior.

De acordo com o ISP, houve também uma redução significativa de roubos de rua (transeuntes e coletivos), roubos de automóveis e latrocínios (roubos seguidos de morte). Em 2009, nesses três meses, foram menos 21 pessoas assassinadas por “assaltantes” no Rio.

A queda em algumas taxas foi celebrada por parte dos jornais cariocas e comentada pelo governador Sérgio Cabral, para quem os índices refletem a política de segurança implantada no Rio de Janeiro em 2009.

O pesquisador e professor Luiz Antonio Machado, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), acredita que é preciso analisar os índices com cautela e diz que ainda não há motivo para comemorar. Para ele, afirmar que os números resultam da política de segurança pública vigente “é uma irresponsabilidade do ponto de vista analítico”, comenta.

“As taxas vêm caindo como resultado de um processo de longo prazo, e não da política de segurança, que continua sendo uma política de guerra”, conclui Machado.

O argumento do professor parece encontrar justificativa em uma das taxas apuradas pelo Instituto. Os autos de resistência, título que reúne as mortes ocorridas em confrontos que envolvem a polícia, apresentou aumento de 15,7% (mais 34 vítimas) em relação ao trimestre móvel do ano de 2008. Para além dos dados do penúltimo mês de 2009, os números divulgados na página do ISP mostram que, de uma maneira geral, o ano não foi só de boas notícias no que diz respeito à segurança pública. No primeiro trimestre, 1.695 pessoas foram assassinadas no estado, sendo 622 na cidade do Rio de Janeiro – 39 a mais que em 2008. Destas, 568 mortes ocorreram na Zona Norte e Oeste da cidade, ou seja, mais de 90% dos casos. Esses índices não mereceram comentário por parte do governador ou da imprensa.

É nesse contexto que Luiz Antonio Machado lembra que, apesar da celebração do governo do estado e de parte mídia, o número de homicídios ainda é muito alto. “Não há motivos para soltar fogos”, finaliza o pesquisador.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

..SOCIEDADE..

(Na categoria revista o grande vencedor do prêmio Vladimir Herzog foi Tatiana
Merlino, da "Caros Amigos". Seu Texto Premiado: "POR QUE OS RICOS NÃO VÃO PRESOS?";
Por Tatiana Merlino/ Caros Amigos 21/10/2009 às 21:26)



Por que a Justiça não pune os ricos?
por Tatiana Merlino


Maria Aparecida evita olhar para sua imagem refletida no espelho. Faz quatro anos que a jovem paulistana saiu da cadeia, mas, nem que quisesse, conseguiria esquecer o que sofreu durante um ano de detenção. Seu reflexo remonta ao ocorrido no Cadeião de Pinheiros, onde esteve presa após tentar furtar um xampu e um condicionador que, juntos, valiam 24 reais. Lá, Maria Aparecida de Matos pagou por seu "crime"(?): ficou cega do olho direito.
Portadora de "retardo mental moderado", a ex-empregada doméstica foi detida em flagrante em abril de 2004, quando tinha 23 anos. Na delegacia, não deixaram que telefonasse para a família. Foi mandada diretamente para a prisão, onde passou a dividir uma cela com outras 25 mulheres. Em surto, a jovem não dormia durante a noite, comia o que encontrava pelo chão, urinava na roupa.
Passado algum tempo, para tentar encerrar um tumulto, a carceragem lançou
uma bomba de gás lacrimogêneo na área das detentas. Uma delas resolveu jogar
água no rosto de Maria Aparecida, e a mistura do gás com o líquido fez com que seu olho fosse sendo queimado pouco a pouco. "Parecia que tinha um bicho me comendo lá dentro", conta.
A pedido das colegas de pavilhão, que não agüentavam mais os gritos de dor e os barulhos provocados pela moça, ela foi transferida para o "seguro"(?), onde
ficam as presas ameaçadas de morte. Maria Aparecida passou a apanhar dia e noite. "Eu chorava muito de dor no olho, e elas começaram a me bater com cabo de vassoura", relembra, emocionada. Somente quando compareceu à audiência do seu caso, sete meses depois de ter sido detida, sua transferência para a Casa de Custódia de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, foi autorizada. Lá, diagnosticaram que havia perdido a visão do olho direito.

Foi nessa época que sua irmã Gisleine procurou a Pastoral Carcerária, que a encaminhou para a advogada Sônia Regina Arrojo e Drigo, vice-presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC). Sônia entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que foi negado. Apelou, então, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em maio de 2005, concedeu liberdade provisória à jovem, 13 meses depois de ter sido presa por causa de 24 reais.
A advogada também entrou com um pedido de extinção da ação, baseando-se no
"princípio da insignificância", aplicado quando o valor do patrimônio furtado é tão baixo que não vale a pena a justiça dar continuidade ao caso. No entanto, até hoje, o processo não foi julgado, e Maria Aparecida continua em liberdade provisória.
A situação indigna Gisleine. É um descaso muito grande. Já era para esse julgamento ter acontecido. Minha irmã pagou muito caro por esse xampu que não chegou a utilizar, critica. "Tem gente que não precisa estar na cadeia. Existem penas alternativas e o caso dela não seria de prisão, mas sim de internação, já que desde os 14 anos ela toma medicação controlada", afirma.

Justiça seletiva

O mesmo recurso jurídico, o habeas corpus, pedido pela advogada Sônia Drigo para que Maria Aparecida respondesse ao processo em liberdade foi solicitado e concedido, em 24 horas, a outra mulher. Mas um "pouco" mais rica: a empresária Eliana Tranchesi, proprietária da butique de luxo Daslu, em São Paulo, condenada em primeira instância a uma pena de 94.5 anos de prisão. Três pelo crime de formação de quadrilha, 42 por descaminho consumado (importação fraudulenta de um produto lícito), 13,5 anos por descaminho tentado e mais 36 por falsidade ideológica.
Somando impostos, multas e juros, a Justiça diz que a Daslu deve aos cofres públicos 1 bilhão de reais. Os representantes da empresa contestam esse valor, mas afirmam que já começaram a pagar as dívidas. A sentença inclui ainda o irmão de Eliana, Antônio Carlos Piva de Albuquerque, diretor financeiro da Daslu na época dos fatos, e Celso de Lima, dono da maior das importadoras envolvidas com as fraudes, a Multimport.

A prisão de Tranchesi foi conseqüência da Operação Narciso, desencadeada pela Polícia Federal em conjunto com a Receita Federal e o Ministério Público em julho de 2005, com o objetivo de buscar indícios dos crimes de formação de quadrilha, falsidade material e ideológica e lesão à ordem tributária cometida pelos sócios da butique.
De acordo com juristas e analistas ouvidos pela reportagem da Caros Amigos,a diferença de tratamento dispensado a casos como o de Maria Aparecida e Eliana Tranchesi acontece porque, embora na teoria a lei seja a mesma para todos, na prática, ela funciona de forma bem distinta para os representantes da elite e para os pobres.
Sonia Drigo ressalta, entretanto, que não existe uma justiça para ricos e outra para as camadas mais humildes. "Ela é uma só, mas é aplicada diferentemente". Segundo o cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Andrei Koerner, a questão do acesso à justiça no Brasil é histórica. "Sempre houve uma grande diferença de tratamento dos cidadãos de diferentes classes sociais pelas instituiçõesjudiciárias". Ele explica que dentro do judiciário há distinções no andamento e efetividade dos processos, que variam com a classe social dos envolvidos.
Segundo ele, um dos maiores problemas do poder é sua morosidade. No entanto,
"isso não significa que os processos dos ricos são mais ágeis. Depende dos interesses e efeitos produzidos pelos processos". Ou seja, a Justiça, quando interessa às classes dominantes, também pode ser lenta. Como exemplo, o professor cita "o longo tempo de uma execução para cobranças de dívidas deimpostos, de contribuições previdenciárias".
Em relação a casos penais, isso também ocorre, "como quando uma pessoa com muitos recursos financeiros é acusada ? Paulo Maluf, por exemplo. Nesse caso, ela é capaz de bloquear o andamento do processo até que a pena esteja prescrita. A agilidade em decidir a prisão ou soltura de uma pessoa também varia, de acordo com sua classe social", aponta Koerner. A diferença é que "um acusado de classe menos favorecida não será capaz de usar as oportunidades permitidas pelo processo".

Servilismo versus repressão

O juiz criminal Sérgio Mazina, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), acredita que o sistema judiciário reserva, aos pobres, o espaço da justiça criminal. ?Essa desigualdade, mais servil aos interesses dos poderosos e mais repressiva em relação aos mais necessitados, acirra-se ainda mais em países como o Brasil, que tem uma sociedade baseada num sistema escravista".

De acordo com Roberto Kant de Lima, Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), existem "moralidades" distintas por parte dos agentes de segurança pública e justiça criminal no tratamento à criminalidade, quando ela está ligada ou não ao patrimônio. "Os latrocínios [roubo seguido de morte], por exemplo, são julgados por um juiz singular, enquanto que os outros homicídios são julgados pelo júri popular". Segundo o professor, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, pode-se concluir que as várias "moralidades" afetam desigualmente a aplicação da lei, sendo que algumas dessas desigualdades estão registradas em tipos processuais explícitos, enquanto outras, não.
Mazina sustenta que a justiça brasileira é constituída para não ser popular. Em sua avaliação, desde a formação da legislação, há uma preocupação muito maior com a preservação patrimonial em detrimento da proteção da integridade física. Isso contribui, portanto, para a criminalização das camadas mais baixas da população, mais propensas, por sua condição social, a cometerem delitos contra o patrimônio. "Há um acirramento da legislação para os crimes cometidos pelos pobres". O código penal brasileiro criminaliza a pobreza, denuncia Mazina.
Sônia Drigo acredita que há uma dupla criminalização, pois "a exclusão já é uma criminalização. Isso me lembra a diferença de tratamento dado para um sem-teto e para aquele que mora numa mansão. Vamos penalizar aquele que não tem endereço, nem carteira assinada. Então, vamos bater nele, torturá-lo porque não teve condições de estudar e trabalhar".
O caso da ex-empregada doméstica Maria Aparecida não deixa dúvidas a respeito de como isso acontece na prática. Na casa de sua irmã, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a moça pouco fala. Mantém-se de cabeça baixa, cabelos longos e negros escondendo parte de seu rosto. Às vezes, esboça um sorriso ingênuo. Sua expressão é de uma menina.
Quando faz um balanço da prisão, da tortura e da perda da visão, muda a fisionomia: 'Tudo isso por conta de um xampu. Minha vida acabou'. Maria Aparecida compara-se com Eliana Tranchesi. 'Eu peguei só um xampu e fiquei
lá. Ela, cheia de dinheiro, saiu logo, e teve do bom e do melhor'.
A alegação que foi dada à família de Maria Aparecida para a perda da visão foi de que a jovem havia batido com o rosto no trinco de uma porta. "Mas isso é mentira, não tinha porta com trinco nenhum lá", afirma Gislaine. Quando a moça foi transferida da cadeia para o manicômio em Franco da Rocha, fizeram um exame de corpo de delito, que atestou lesões corporais leves. "Ela perdeu um órgão vital, não a socorreram. Gostaria de saber o que seria a lesão corporal grave, entregá-la num caixão para a família?", questiona Gislaine, indignada.

Propriedade, o grande valor do direito penal

De acordo com a juíza Kenarik Boujikian Felippe, integrante da Associação de Juizes para a Democracia (AJD), 'a propriedade é o grande valor do direito penal. Basta ver que a pena do furto é maior do que a pena de tortura. Para o direito penal, pegar algo da sua bolsa é mais grave do que a tortura', avalia. Ou seja, para a justiça brasileira, é mais importante proteger um xampu e um condicionador de alguma loja que a integridade física de Maria Aparecida.

A 'sagrada' defesa da propriedade privada acaba sendo utilizada como argumento para criminalizar movimentos sociais, como no caso das organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). "Na medida em que esses movimentos possam a reivindicar uma redistribuição de riquezas, há sua criminalização. Se tiverem apresentando um reclamo como o da proteção do meio ambiente, não há necessidade de criminalizá-lo. Mas se eles questionam a estrutura econômica da sociedade, há uma propensão à sua criminalização".
Para Kenarik, a diferença de tratamento dispensado a ricos e pobres pode ser atribuída, ainda, a um "judiciário extremamente conservador, ideológico, que acha que pobre, por sua natureza, tem que estar preso."Ninguém assume isso, mas existe. É algo que vem de 500 anos de História".

Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que, muitas vezes, os magistrados estão imbuídos de preconceito quando vão lidar com pessoas das
classes menos favorecidas. De acordo com o defensor público Rafael Cruz, a
exigência de endereço fixo e de trabalho para conceder liberdade provisória
a uma pessoa que está sendo processada é um exemplo típico. ?]"Na justiça
federal, onde tem os crimes tributários, isso não acontece. Há uma seletividade, como se os crimes contra o patrimônio fossem mais graves que
os crimes tributários".

Na avaliação do juiz Sérgio Mazina, aqueles que não têm bons antecedentes e
não são proprietários acabam sendo estigmatizados. ?Então, o discurso do juiz, dos policiais, é voltado para a priorização de quem tem condições econômicas, e para a punição do mais carente?.

Sônia Drigo resume: a lógica, na cabeça dos magistrados, funciona assim:
"vamos ver se esta pessoa não está envolvida em outros casos, se o endereço
dela é este mesmo. É como se um morador de rua não tivesse cidadania para
responder em liberdade qualquer processo que venha a ser instaurado contra
ele".
Casos arbitrários é que não faltam. Desde 2005, após conseguir um habeas
corpus para Maria Aparecida, Sônia trabalha defendendo voluntariamente
mulheres acusadas de cometer pequenos furtos. O trabalho, segundo ela, não
tem fim, pois sempre aparece um caso novo, o que evidencia o comportamento
do Judiciário. É como se a Justiça dissesse: "Por que ela roubou picanha e
não carne moída? Ela disse que estava com fome, mas quem garante?". A dúvida
sempre é contra aquela pessoa. Sempre se faz mau juízo, e não garante a ela
os benefícios que são garantidos para aqueles que têm informação, instrução, critica.

Uma das mulheres que Sônia defende também se chama Maria Aparecida, e foi
presa em flagrante por tentativa de furto de seis desodorantes de uma loja
em São Paulo. Condenada a 14 meses, sua pena está próxima do fim. A moça está na Penitenciária Feminina de Santana, a mesma onde Eliana Tranchesi esteve presa. A diferença é que a última teve habeas corpus concedido, enquanto a primeira não. Uma, era acusada de sonegar 1 bilhão em impostos. A outra, tentou subtrair objetos que não chegavam a totalizar 30 reais.

A pena adequada não seria de privação de liberdade, e além disso, a liberdade provisória poderia ter vindo em favor dela 48 horas depois. Mas não veio. E aqui também seria aplicável o principio da insignificância, diz Sônia. Se o caso chegar ao STF, será anulado, garante. No entanto, a mulher já terá cumprido toda a sua pena."Ninguém vai prejudicar o patrimônio de uma grande rede de supermercados
porque tentou furtar seis desodorantes que não foram usados, o chocolate que
não foi comido, a picanha que não foi assada, o brinquedo que não foi usado.
Há crimes contra a vida, homicidas famosos que têm o direito da liberdade
provisória garantida. Já essas pessoas não, pois ousaram atingir o patrimônio de alguém".

Relações perigosas

O preconceito dos membros da Justiça com as classes mais pobres também é
fruto da relação histórica entre representantes da elite e do Judiciário, afirmam os analistas. "No Brasil, ele é formado por quadros da classe dominante, especificamente no século 19. Havia a necessidade da formação de quadros, e eles vieram da elite agrária", lembra Mazina.

Na avaliação do Professor Titular de Antropologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF), Roberto Kant de Lima, "em qualquer sociedade, os membros
do Judiciário serão parte das elites, seja por sua posição original, seja por merecimento". No entanto, ele avalia que a elite brasileira não é cidadã, pois reivindica sempre privilégios como a aplicação particularizada e excepcional da lei no seu caso, ao invés de reivindicar a uniformidade na aplicação das normas para todos, sem distinção, característica de qualquer República.
Desse modo, acredita, o poder econômico e as relações pessoais assumem um
peso crítico, "pois são acionados mecanismos legais e morais que encontram
respaldo na sociedade brasileira, socialmente hierarquizada, embora teoricamente republicana".

Outro aspecto apontado é que quando se trata de crimes cometidos pela elite,
como desvio de dinheiro, "parece que o acusado não é uma ameaça para a sociedade, e assim, não há um interesse para que o processo ande rapidamente", avalia Sônia Drigo. Ela lembra que nunca se encarcerou tanto
no país como hoje. De acordo com dados do Departamento Penitenciário
Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, em 1995, havia 148 mil detidos
nas penitenciárias e delegacias no país. Em junho de 2007, esse número subiu
para 422.373. "Esses presos não são da elite e uma boa parte não deveria
estar preso. 30% do total poderia estar em liberdade".

No Brasil, é consenso entre a população que os ricos nunca vão presos, e que
cadeia é coisa de pobre. "Aqui na justiça estadual [de São Paulo] não temos
a competência de investigar crimes financeiros, colarinho branco. Eles
correm na justiça federal. Aqui temos roubo, tráfico de entorpecentes",
relata a juíza Kenarik Boujikian Felippe. "Mas qual é o trabalho que a
policia faz com eles? O sistema policial funciona só para quem é pobre.
Aquele que ganha rios de dinheiro eu não vejo, não sei quem é esse cara.
Esses réus nem chegam aqui. Eles estão na esfera federal. E a policia sempre
funcionou para isso, e acaba se refletindo".

Para Sérgio Mazina, presidente do Ibccrim, o principal motivo de haver poucos rerepresentantes da elite processados e condenados é fundamentalmente político, mas é resultado, também, de um sistema falho. "Não temos uma policia preparada para investigar esse tipo de crime, ela é preparada para investigar e prender aquele que está te assaltando no meio da rua com revólver, querendo pegar sua bolsa ou celular".
Já para ir atrás de crime cometido pelos representantes do poder econômico,
segundo Mazina, não há estrutura, pessoal, equipamentos, e sequer formação
para entender o delito que está sendo praticado, pois ele é, geralmente, complexo, por mexer com os aspectos tributário e financeiro. Assim, o sistema "se resume a fazer intervenções espetaculares, sensacionais, que acontecem em momentos da mídia, mas que são inconsistentes".

O presidente do Ibccrim destaca que a punição precisa estar assentada em cima de provas. "Não adianta sair dando sentenças de um século para todo mundo, porque ela não vai subsistir e a justiça vai ficar desacreditada. Esse é o grande perigo".

No caso de Maria Aparecida e Gisleine, isso já aconteceu. "O Judiciário
precisa ser modificado. Tem que se tratar todos igualmente", sentencia
Gisleine. Já Maria Aparecida diz que a perda do olho abala muito sua vaidade: "Se pelo menos eu tivesse saído com a minha vista, nem precisava de
nada mais".

"Você se sente injustiçada?"
- Sim, muito?, responde, escondendo o
rosto, lágrimas escorrendo.

O remédio para a falta de liberdade

Um dos aspectos sintomáticos da diferença de aplicação da Justiça para ricos
e pobres é o habeas corpus. Considerado o mais importante instrumento judicial de defesa e proteção da liberdade individual, ele tem sido garantido em casos envolvendo ricos, famosos e poderosos, como a empresária Eliana Tranchesi e o banqueiro Daniel Dantas. No entanto, pessoas como Maria Aparecida e centenas de outras não têm a mesma sorte. De acordo com a advogada criminalista Sônia Drigo, a lei é uma só, mas quando se cumpre em favor de uma grande empresária, parece que houve privilégio. Segundo ela, a decretação da prisão de Tranchesi em decorrência de uma sentença de primeira instância é arbitrária. Portanto, a lei foi cumprida. Porém, para conseguir a aplicação desse direito, a dona da Daslu contou com uma equipe de advogados que a assessoraram, o que não acontece com a população pobre. "O que está errado é manter essas pessoas humildes, que não têm advogados, presas", afirma Sônia.

Ela explica que o habeas corpus serve para remediar um constrangimento, e
leva de duas a cinco semanas para ser impetrado. Acontece que uma pessoa da
classe alta contrata uma banca de advogados que, a partir daquele momento,
vai fazer todo o necessário para liberar o acusado. "E, uma vez que se entra
com essa medida, a tramitação também é diferente, dentro do próprio judiciário, para quem tem mais ou menos condições". Ou seja: quem tem menos dinheiro, dificilmente vai conseguir comprovante de endereço, certidão de nascimento ou documento de trabalho, requisitos exigidos para obter a liberdade provisória. Para reunir esses dados, é preciso entrar em contato com a família, algo bastante dificultado pela precariedade das defensorias públicas. "Muitas vezes essas pessoas conhecem o advogado no dia do interrogatório".

Ao rebater as recentes críticas de que o Supremo Tribunal Federal (STF) só
concedia habeas corpus para ricos, o ministro Gilmar Mendes afirmou que, no
ano passado, 350 pessoas receberam tal direito, ricos e pobres. Ele disse, ainda, que pesquisou pessoalmente o assunto para descobrir que, entre os 350 habeas-corpus concedidos, 18 foram para casos em que "se aplicam o princípio da insignificância: o furto da escova de dente, do bambolê, da pasta dental, do sabonete, do vídeo. Se esses casos não tivessem chegado ao Supremo, essas pessoas ainda estariam presas", afirmou.

No entanto, Sônia questiona o raciocínio do Ministro. "Quantos habeas corpus
não tiveram que ser pedidos até chegar a esses que foram julgados? Há inúmeros meandros para que se chegue até lá, e, nesse percurso todo, a pessoa já cumpriu pena. Há casos de acusados que ficam detidos nove, 11,14 meses, e os habeas corpus não chegam ao STF", relata.

De acordo com ela, ao conceder os tais 18 habeas corpus, o STF simplesmente
cumpriu o que estava na lei. "O primeiro juiz que pegou o processo poderia
ter feito a mesma coisa, mas não fez porque existem preconceito e repressão
contra essas pessoas, além da falta de tempo dos defensores públicos".

A juiza Kenarik Boujikian Felippe, integrante da Associação de Juizes para a
Democracia (AJD), lembra que as arbitrariedades cometidas em casos envolvendo os mais pobres são grandes, ?e o tempo dos mortais para chegar no Supremo é imenso.

Tem muita gente que fica presa pelo bacalhau, pelo danoninho, pelo tender,
biscoito. Quem tem condições de contratar um advogado, explica ela, "vai a
Brasília, despacha caso a caso com o ministro. Quem é pobre, vai esperar,
porque a defensoria não tem gente suficiente para levar de caso em caso".

A defesa dos humildes na penúria

Quem necessita de assistência jurídica, mas não tem dinheiro para pagar um
advogado, pode, em tese, recorrer ao serviço da Defensoria Pública. De acordo com a Constituição Federal, qualquer pessoa que comprove a falta de recursos pode recorrer ao trabalho dos defensores. Apesar de cerca de 95% da população carcerária do país depender desse serviço para responder os processos nos tribunais, a instituição sofre com problemas estruturais e orçamentários.

Um diagnóstico do Ministério da Justiça revela que, a cada R$ 100 do Orçamento do Estado destinado às instituições jurídicas, somente R$ 3 vão para as Defensorias. De acordo com a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), no país existem cinco mil defensores públicos. Segundo o defensor Rafael Cruz, "por conta das dificuldades, não conseguimos atender como um advogado particular faria. Com o número de profissionais que temos, somos obrigados a estabelecer prioridades", lamenta.
Na avaliação do juiz Sérgio Mazina, presidente do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (IBCCrim), "aqueles que deveriam prestar assistência
jurídica aos mais pobres estão na penúria. E, em comparação com as demais
carreiras, são mal remunerados". Os integrantes do Ministério Público (MP)
ganham, em média, R$ 19 mil. Os defensores, entre R$ 7 mil e R$ 8 mil. Além
disso, o MP, que tem a função de acusar, possui um orçamento oito vezes
maior que a defensoria, que, ainda, conta com menos pessoal.

A juíza de direito e membro da Associação dos Juizes para a Democracia
(AJD), Kenarik Bou-jikian Felippe, insiste na importância de se fortalecer a
instituição. "Esse é um passo para tentar propiciar uma situação igualitária". Ela lembra que, apesar de ser previsto em lei que toda prisão em flagrante deve ser comunicada à Defensoria num prazo de 24 horas, "ela não tem estrutura para dar atenção a esses flagrantes".
Hoje, a Defensoria do Estado de São Paulo conta com 400 defensores públicos,
que atendem, por ano, cerca de 850 mil pessoas. De acordo com estudos da
própria instituição, caso houvesse 1.600 profissionais, ela poderia ter postos de atendimento em todas as comarcas.

Ainda segundo números da Defensoria paulista, a população alvo (maiores de
10 anos, com renda mensal de até três salários mínimos) é de 23.252.323
pessoas; e, para cada defensor público, existem 58.130 potenciais usuários
(no Estado do Rio de Janeiro, essa proporção é de 1 para 13.886 usuários).

Judiciário em crise?

Brigas entre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), desentendimentos
entre juizes federais e tribunais superiores, divergências técnicas entre
magistrados. Um manda prender, outro manda soltar. As recentes reviravoltas
nos casos envolvendo processos contra representantes da elite trouxeram à
tona conflitos entre diversos setores do Poder Judiciário.

De um lado, juizes criticam os tribunais superiores, que estariam impondo
dificuldades para prender suspeitos de crimes financeiros, como a concessão
de ha-beas corpus em favor do banqueiro Daniel Dantas, e a liberdade
concedida à empresária Eliana Tranchesi, dona da butique Daslu. De outro; as
instâncias superiores defendem que tais prisões foram arbitrárias, e que o
habeas corpus é um direito constitucional, que deve ser garantido a todos os
cidadãos. A indagação que se faz é: o Poder Judiciário está em crise?

Para o cientista político e professor da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), Andrei Koerner, "esses conflitos dentro do Judiciário são muito
positivos, pois revelam que, a partir da redemocratização, a tradição
jurídica brasileira tem sido posta em questão". Segundo ele, houve o
fortalecimento dos papéis e poderes das diversas instituições judiciais e a
redistribuição entre elas. "Os processos de mudança devem continuar
ocorrendo, com o engajamento crescente de profissionais na realização dos
princípios, regras e objetivos da Constituição de 1988".

Já o juiz de direito Sérgio Mazina, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), acredita que é normal que uma decisão de primeira instância não prospere quando levada a um tribunal superior. Mas é claro que, quando, "há duas decisões opostas num período de 48 horas, surja um debate público em torno das desavenças", diz, referindo-se ao caso de Daniel Dantas.

Na avaliação da juíza Kenarik Boujikian Felippe, tais divergências fazem parte da produção do pensamento jurídico. No entanto, lembra que o princípio da presunção de inocência é um direito ao qual todos deveriam ter acesso.

(MODELOS DE FELICIDADE)


Da Meditação, da pressa e do consumo...

Frei Betto

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da
Mongólia, do  Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos,
recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.  Outro dia, eu
observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera
cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos,
geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e
perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'.
Comemorei: 'Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura,
piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada.
Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de
meditação!

Estamos construindo super-homens e super  mulheres, totalmente
equipados, mas emocionalmente  infantilizados.
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seislivrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha,  uma maravilha, não tinha uma celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu
quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem  nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra!
Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos
virtuais. E somos também eticamente virtuais...

A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da  imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se  apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este
refrigerante, vestir este  tênis,  usar esta camisa, comprar este
carro,você chega lá!' O problema é  que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba  precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.

O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental  três requisitos são  indispensáveis: amizades,  autoestima, ausência de estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um shopping-center. É curioso: a maioria dos
shoppings-centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas;
neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de
missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos  céus. Deve-se passar cheque pré-datado, pagar a crédito,  entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo  hambúrguer do Mc Donald...

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares
espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de
descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz !"