sexta-feira, 26 de março de 2010

Cartas, talvez, de um sonho... - II

- E que o nosso Pilar seja o Amor!


Do alto do imóvel que reinventa paredes e formas do antigo casario, se vêem, de um lado, a prefeitura da cidade, de outro, parte dos guindastes do porto e a torre da Igreja do Pilar. A pequena igreja, hoje abandonada, foi construída no século dezessete... Lá, celebrou Frei Caneca em tempos que aquela parte do bairro era chamada "Fora de Portas". À época do frade revolucionário, Fora de Portas já era lugar de ocupação ambígua: ali moravam trabalhadores fundamentais para a vida da cidade, mas eram cidadãos de "segunda categoria" no Brasil Monárquico. Alguns livros de História referem-se a "brancos pobres"...

A pobreza, em nosso grande país, apequena as liberdades. Livres têm sido aqueles que podem pagar por uma segurança relativa, muros invisíveis, títulos, status. Para os outros, pobres, ainda cabe sonhar os sonhos de liberdade de Frei Caneca.

A Comunidade do Brum ou Comunidade do Pilar recebeu inúmeros nomes, nomes carregados de estigmas, que rememoram a ambíguidade da ocupação de um espaço central da cidade por uma população secundarizada - quando não totalmente invisibilizada - pelas estruturas sociais aprisionantes de um país desigual. Chamaram-na "favela do rato", amenizado depois por "favela do Brum"... Ali, se sonha ser livre. Ali, as instituições da República sonhada por Frei Caneca são uma mão pesada sobre os cidadãos. O Estado não parece ter sido construído enquanto "democrático", muito menos "de direitos"...

A experiência de seguir adiante, ultrapassando as fronteiras do Recife boêmio e adentrando o Recife marginalizado, invisibilizado, que tenho vivido, nos últimos tempos, é um reencontro com a História que me comove e alenta. Reencontro com a História não pela antiguidade e marcas do passado nas ruínas, mas reencontro com a História, ato contínuo, processo, movimento aberto, flagrado na criatividade e teimosia do povo.

A partir da Rua do Brum, adentrando a comunidade, reaprendo História, reinvento-me educadora e militante. E entendo cada reinvenção como gesto plural. São muitas mãos a tecer os fios de cada nova aprendizagem. Mãos de homens e mulheres, jovens, crianças. São as suas vozes, as suas histórias, que me têm convidado a viver equilibrando indignação e esperança sob a batuta do amor.

Lembrar a História, no entanto, e pensar direitos são, neste momento, apenas o mote para a fala mais transparente que desejo deixar registrada, porque nenhum conteúdo de reflexão seria mais verdadeiro que dizer simplesmente: esta manhã, eu acreditei novamente que o amor é a força mais revolucionária que existe!

E por sobre os telhados, olhando a cidade, eu me vi, me reconheci. Entendi que enquanto educadora e gente preciso viver, de fato, a Educação enquanto ressocialização para que me humanize, para que dialogue e me solidarize e identifique com outras pessoas.

Uma chama viva de esperança queima certezas de papel. Sinto-me mais limpa da poeira de bibliotecas... O que vou fazer? Como vou fazer? Não sei... De peito aberto, disponho-me a aprender (cotidianamente) as respostas com o povo, caminhando na História.


Luciana Cavalcanti
Recife, Várzea do Capibaribe, 26 de Outubro de 2008


Nenhum comentário:

Postar um comentário