terça-feira, 4 de agosto de 2009

>> circulando <<

Hip hop é compromisso
por MV Bill
Semana retrasada fui surpreendido por denúncias irresponsáveis a meu respeito, numa tentativa de manchar minha imagem. Produziram um espetáculo aparentemente jornalístico que sugeria ser eu testa de ferro de empresas supostamente piratas, insinuando que desviei milhões de reais, quando não tenho sequer a minha própria empresa. E ainda tentaram induzir as pessoas a pensarem que o livro que escrevi era bancado por dinheiro público. O que é comprovadamente falso.
O fato de, numa relação comercial privada, eu usar uma mesma produtora que tem projetos com a Petrobras não permite a ninguém concluir que exista alguma triangulação, como não existe! Isso inclusive já foi confirmado pela própria estatal.
Só que miraram num alvo, mas acertaram no próprio pé. O curioso é que, depois, foi descoberto que a empresa questionada é uma agência da área artística reconhecida no mercado, tanto que boa parte da respeitável mídia - inclusive a "denunciante" - recorre a seus serviços. Que ironia...
Mas para mim o caso não está encerrado, pois o fato de eu não ter absolutamente nada com essa história, me motiva sim a contribuir para uma grande reflexão, aproveitando essa tentativa de maldade para trazer uma discussão de verdade.
Li muitos questionamentos e defesas de artistas sobre suas dificuldades para se manterem no mercado formal e legal. Li muito sobre o que hoje é quase um câncer que corrói praticamente todo o mercado cultural/artístico no Brasil: a necessidade de boa parte dos artistas e riadores precisarem de empresas que vivem da intermediação entre o patrocinador e a arte. Li sobre artistas que recorreram a essas agências culturais para formalizar seus shows que efetivamente ocorreram.
E para entender melhor esse problema procurei alguns profissionais da área tributária e, entre outras coisas, pude concluir que não existe dados sobre o impacto da cultura brasileira no PIB nacional, ou seja, não existimos formalmente.
Entendi que nós, profissionais autônomos, pagamos sobre o valor do serviço prestado 11% de INSS, 5% de ISS e ainda Imposto de Renda, de acordo com tabela. Além disso, todas as essoas jurídicas que nos contratarem deverão recolher mais 20% sobre o total do cachê para o INSS, independentemente do valor do serviço, e ainda correr o risco de haver caracterização de vínculo empregatício.
Entretanto, não é vantagem para nenhum trabalhador permanecer no mercado informal, não há auxílio doença, aposentadoria, e nem são garantidos os benefícios dos contratados com carteira: férias, gratificação de um terço do salário nas férias, descanso remunerado, décimo terceiro, pagamento de hora extra, FGTS, etc.
Na verdade, um trabalhador informal acaba ficando à margem das estatísticas e da realidade da classe trabalhadora brasileira, lembrando que a categoria de trabalhadores de "carteira assinada" sempre se destacou como minoria. No caso de profissionais ligados à cultura, essa situação ainda piora quando observamos que, além do indiscutível excesso de tributos, possuímos algumas características que, de acordo com as regras do jogo, contribuem ainda mais para elevar o custo de uma possível contratação, como, por exemplo, o fato de que a maioria desenvolve suas atividades em horário noturno e aos finais de semana. Diante dessa realidade, podemos afirmar que, do ponto de vista financeiro, é praticamente impossível contratar um profissional da área cultural através de registro em carteira.
Outra característica é que as funções exercidas pelos profissionais ocorrem em períodos determinados e dificilmente são de ação continuada, inviabilizando sua contratação nesse formato.
Toda essa instabilidade obviamente intimida a abertura de empresas próprias, principalmente se pensarmos nas dificuldades para se abrir uma empresa e mantêla em funcionamento neste país. E olha que nem estou falando dos artistas iniciantes, que em geral trabalham para divulgar, não por cachê, mas que estão submetidos às mesmas regras, incluindo pagamentos de músicos e todos os encargos inerentes à atividade.
Mas é bom deixar claro que as coisas ditas por mim não são motivos para burlar a legalidade; pelo contrário, ela precisa ser a nossa meta, sempre. Tenho nítido que, como cidadão, espero sempre que o dinheiro público seja bem aplicado, mas não podemos esconder que quem trabalha no meio artístico acaba meio órfão, sem ter uma regulamentação própria para seguir, tendo que se adaptar a uma realidade que não é sua. Portanto, convido todos os que pensam cultura neste país, em especial os parceiros das secretarias e do Ministério da Cultura, para juntos levarmos essa discussão adiante, sem eleger um bode expiatório, mas sim construir uma nova lógica para a cultura brasileira.
De certa maneira, agradeço o mal que tentaram fazer comigo, pois a conclusão a que chego é que, ao mesmo tempo em que fiquei indignado por meu nome ter surgido num rolo que não me diz respeito, sinto muito orgulho por ser um artista/militante discriminado por sua origem social, mas que está tendo mais uma vez a coragem e a responsabilidade de botar o dedo na verdadeira ferida da cultura brasileira.

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MV Bill é cantor de rap, escritor e um dos fundadores da Central Única de Favelas (Cufa)
Fonte: Jornal O Globo de 02 de agosto de 2009

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