Polícia Pacificadora?
por Michel Fernandes, morador da Cidade de Deus.
Ainda lembro quando Michelle Silva, moradora da localidade Quadra 13, na Cidade de Deus, morreu ano passado. Ela era esposa de um amigo meu, que é mototaxista e trabalha dignamente. Michelle foi covardemente alvejada e morta por um disparo de arma de fogo, não me recordo o calibre e o tipo de arma (fuzil ou pistola), mas até hoje lembro que foi uma atitude covarde de alguém despreparado e insensato.
Esse episódio me deixou chocado e muito triste pela circunstância na qual ela foi embora: mãe de duas filhas e cidadã trabalhadora, que ao chegar em casa do trabalho foi para o pequeno espaço onde se localiza o tanque de lavar roupas. Lembrar disso me deixa bastante pra baixo e a partir desse fato passei a tomar certas precauções.
Moro, por enquanto, com a minha mãe no local chamado Pantanal 2 ou Casinhas, com casas duplex anexas umas as outras que formam um conjunto de vilas, com amplas ruas internas, onde as crianças brincam quase que o dia todo e também acontecem churrascos e festas de aniversário. Este ano, por duas vezes, me deparei com situações que "NÃO" se assemelhavam a isso, mas que me lembrou muito o caso da nossa querida Michelle.
Um deles foi dia 6 de junho, dois dias depois do aniversário de 9 anos do meu filho. Era uma quinta-feira, dia que o caminhão passa para fazer a coleta do lixo. Minha mãe de 75 anos acordou cedo, tipo 6h da manhã (o caminhão passa sempre às 7h30), fez o café e ficou vendo TV até o horário de ir ao local levar o lixo. Eu estava dormindo no quarto de cima e não percebi o que aconteceu.
Naquele dia acontecia uma operação policial na vila onde moro. Às 7h20 da manhã, minha mãe abriu o portão e se deparou com um policial (tropa comum) apontando um fuzil 7,62MM em direção a ela. Com toda a certeza isso foi uma demonstração do despreparo, insensatez, estupidez e sei lá mais o que. Minha mãe, como diz na gíria, soltou o verbo para esse sujeito, disse que ele não deveria apontar uma arma para uma senhora com a idade dela e com um saco de lixo na mão, que além do mais, ela estava saindo do domicílio dela e ele não tinha que agir dessa maneira. Deu um sermão e uma lição de como um idoso deveria ser respeitado. O policial não esboçou nenhuma palavra (menos mal).
Inconformado com aquela situação de ter que ouvir tudo aquilo e ter que ficar quieto, ele exigiu, sem mandato policial, uma revista no interior da casa para mostrar a sua força ou, talvez, dizer quem é que “manda” e quem dá a última palavra. A casa foi revistada e nada foi encontrado. O infeliz foi embora com sua equipe. Agradeço muito a Deus por não ter acontecido nada com ela.
O segundo fato ocorreu dia 5 de agosto. Eu estava na sala, por volta das 22h30, fazendo back up dos arquivos do meu PC para fazer um reparo na instalação do LINUX. Comprei cinco DVDS virgens e fiz o back up, mas tive um problema. Tenho tantos arquivos que os CDs não deram para salvar tudo. Medi o tamanho do que ainda tinha no PC e observei que poderia salvar uma parte no meu pen drive e o restante deixaria no PC da Mônica, minha amiga e dona de uma lan house aqui na Cidade de Deus.
Quando sai de casa, por volta das 23h15 (a lan house fecha meia-noite), abri o portão e me deparei com um policial do Batalhão de Choque (farda camuflada) apontando um fuzil calibre 7,62 para a minha cabeça. Eu conheço muito bem esse tipo de armamento, porque fui soldado armeiro do Batalhão de Infantaria do Exército Brasileiro e sei, tecnicamente, o potencial de destruição de uma arma desse porte.
Ele mostrou uma falta total de preparo. Mais um caso parecido com o que aconteceu com a minha mãe, a única diferença foi a mudança na cor da farda e o tipo de tropa. Olhei bem nos olhos dele e levantei os braços (maneira de provar que estava desarmado). Vi toda a minha vida passar em segundos, como se fosse um filme de flash back. Já tinha ouvido falar dessa sensação quando se está em risco de vida. Não tive medo, mas pensei: será que vou morrer na porta da minha casa inocentemente?
Em seguida, o sujeito abaixou o fuzil e veio me revistar de maneira brusca e sem pedir autorização, algo muito rotineiro nas favelas e que contraria a conduta militar. Cito isso, porque já fui abordado na Zona Sul e o procedimento foi diferente. Depois da revista, o policial foi embora calado. Fiquei muito indignado com aquilo e bati o portão com força.
Como tinha dito que havia tomado uma precaução, a regra é agora sair de casa e tomar muito cuidado ao abrir o portão, pois eu e minha mãe não sabemos se vamos encontrar um policial apontando um fuzil para a gente. Se não bastasse o cuidado que tenho que ter nas ruas, pois vivo num estado que está mergulhado numa guerra civil e a violência está todos os dias estampada nos jornais, tenho que ter ainda mais cuidado quando saio de casa.
*Michel Fernandes é morador da Cidade de Deus e participa da oficina de correspondentes multimídia oferecida pelo Viva Favela.
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